perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe

Por um daqueles fretes do destino em que o domingo é pródigo, encontrei ontem o José Eduardo. Está velho. O corpo enfunou, veste sem gosto, sem alinho. Um caco, que o pivete a fritos entranhado na fatiota coçada franqueia à náusea orgânica. Sem me dar ensejo de escusa, pegou-me pelo braço e verteu porrigem sobre a corja prosperante da política e da imprensa, na ideia lá dele gente arteira, untuosa, tão módica nos afectos quão prestável e subserviente ao trato dos poderosos da economia e das finanças. No crescendo encontrou Lisboa. Demorou-se em Lisboa, A Pestilente. Tirou uma folha amarfanhada do bolso direito do casaco. Retinha uma passagem do Journal of A Voyage to Lisbon, opúsculo póstumo de Henry Fielding, publicado no ano do grande terramoto e das valas comuns a perder de vista. Fez questão de a ler, conferindo ao acto aparato de mensageiro do Soberano. If a man was suddenly to be removed from Palmyra hither, and should take a view of no other city, in how glorious a light would the ancient architecture appear to him! and what desolation and destruction of arts and sciences would he conclude had happened between the several eras of these cities! Um suplício cultivado, pensei. O bardo bretão aportara a Lisboa à última morada. Não surpreende que o pé se lhe afundasse na lama. Prezei que o José Eduardo sabia, e talvez soubesse e o desvairo não passasse de ronco de animal ferido de morte. Achei outro para ser, distraído, surdo. Para velho, velho e meio. Entremostrei um sorriso amigável, mais indulgente que generoso. O José Eduardo não fez caso. Sabes, continuou adiando uma fracção de segundo, sabes que foi a Igreja que deu cabo da sedução? Seducere era um pântano, mas um pântano com muita vida. A obsessão eclesiástica com a integridade da alma e da Graça secou-o. Seducere, seduzir como enganar, corromper, persuadir à má fila, simular. Como se me achasse expressão interdita na vez de tese e emudecido, cansou-se de esperar e investiu: eles, essas novas estirpes da petty bourgeosie, essas que do amor só conhecem a mimesis, o código de comunicação, o sentimento forjado, o ritual de possessividade, que vivem obcecadas com as relações e a infidelidade, como se fossem incompatíveis. Corno, eu? Deste, daquele e daqueloutro? Era o que faltava. No meu tempo havia uma coisa muito bonita chamada adultério. Passava das seis e meia da tarde. Estava com pressa e sem disposição para topete de chavelho patarata a esgrimir especulações pseudo-psico-sociológicas e atalhos agressivos que metiam água na lógica. Lembrei-me do francês. Que o prendia. Abri a boca, plagiando: tu sais, mon chèr, rien ne paralyse l’imagination comme l’appel à la réputation. A seguir, num repente que até a mim apanhou de surpresa, preguei-lhe dois valentes sopapos – ando com a mão pesada para estrangeirados que não sabem recuar a tempo. O José Eduardo ficou de boquinha e lábios abertos, cara à banda e lágrima ao canto do olho, que cavalguei sussurrando-lhe dois versos da Fiama.

Não é tão estranha a vitalidade da Natureza
Quando as paisagens são cópias.

Sou discreto e deveras ocupado pelo meu interior (sim, sim, também eu ando ao mesmo), mas gosto ainda menos de motivos secretos que de manias de grandeza. Não há nada que saber, leitor(a). O remate encontra a moldura. Perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe.

Mensagens populares deste blogue

zero absoluto

la volta dorata