um pulha é sempre um pulha

O quarto da minha avó, um salão de baile com três guarda-vestidos enormes, foi o primeiro lugar da minha existência. Não tenho na memória nenhum cenário de vida anterior, nem o quarto da minha mãe, mais pequeno, ao fundo do corredor, nem o meu, contíguo. Acho que quase tudo o que sei sobre a vida aprendi no quarto da minha avó. Vejo-me com a boca colada ao espelho de um dos guarda-vestidos a treinar o beijo e sentada ao toucador a pôr ganchos e rolos no cabelo, hesitando entre vir a ser quando fosse grande femme fatale ou cabeleireira.
Foi ali, no meio daquela solenidade de colchas e cortinados, cómodas monstruosas e caixas de perfumes que, pela primeira vez, a Tita, a minha tia mais nova, me explicou
- Maria, um pulha é sempre um pulha.
Teria oito anos, ou menos. Mas fui crescendo e a Tita refinando.
- Maria, um cobarde é sempre um cobarde. Um cabrão sempre cabrão. Um filho da puta será sempre um filho da puta.
Vivíamos assim. Um filho da puta com atestado de filho da puta não passava do muro de granito. Ao menor atrevimento, a minha avó fazia um sinal ao caseiro que, de sacho na mão, montava guarda ao portão. Um pulha não se sentava à mesa nem a um cabrão se oferecia o vinho da casa.
Essa educação rígida protegeu-nos de tormentas várias. Lembro-me de ouvir a minha avó repetir, como uma reza: "À primeira todos caem, à segunda cai quem quer".
Foi talvez em meados dos anos 80 que o relativismo moral se popularizou e também chegou ao Minho, devido à explosão da psiquiatria e da investigação psicossociológica.
E então o bom e velho pulha começou a aparecer embrulhado em papel celofane, com atestado de doido, maníaco, deprimido, instável, cumcaraças. Eu vi a minha mãe, a menos inteligente das mulheres da nossa família (e o que me dói escrever isto) a abrir o portão a filhos da puta, a sentá-los à lareira com uma manta nos joelhos, a regá-los com o vinho da casa e a seguir a bater com os cornos no granito, sob o olhar de ódio da minha intransigente avó, que lhe gritava insana
- UM PULHA É SEMPRE UM PULHA.

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