ninguém sai às pedras da rua

Eu vi-o com o meu filho J. Em Sintra, anos sessenta. Estávamos os dois à sombra da nogueira, de vez em quando uma noz batia no tampo da mesa onde estava o capilé com limão. Era a melhor coisa que lhe podiam dar. J. puxou o panamá para os olhos. Era o que fazia quando se metia em empreendimentos de risco – gatinhar pelo mar adentro, mexer em cães desconhecidos. Já falava, mal. Começou a subir as escadas do galinheiro, onde estava um galo Leghorn, branco, a jóia da capoeira, que muito o afeiçoava e que bicava minha mãe, ofendidíssima. Meu pai levantou-se, a angústia na voz. A escada era íngreme, de pedra e sem apoios.
Olha o menino, filha, tu cais, J. Afonso.
Tratava-o sempre com o segundo nome, que era o dele, Afonso.
O avô vá badameda. Ião quê, Ião pó.
E continuou, de gatas, com a viseira baixa. Berrando com voz de cabreiro. Meu pai sentou-se, inquieto ainda, o raro sorriso azul.
Vês tu, filha, ninguém sai às pedras da rua.

[Armando Silva Carvalho, Maria Velho da Costa, O Livro do Meio, Lisboa, Caminho, 2006, pp. 226-7.]

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