
Saí assim. Franzino, fraca-chicha, bracinhos e perninhas fininhos. Fazendo história e gazeta, não escapei a sair aos meus. Gerações sucessivas afastadas da lavoura – a usina nem chegámos a frequentar –, picadas
in dulci jubilo para dar a volta aos
clichés do pensamento é no que dá.
Uma estirpe de folgados. Não me posso queixar. Não tenho a massa crítica mas tenho como poucos o espírito de
bouillon de culture que mistura sublimação e recalcamento de teorias, pacíficas, violentas e sabe Deus que mais. É a vantagem de treinar a
diferentia specifica dos primatas até cair para o lado. Aprendo todas as lições que metem e aliam verbos e números à primeira. A seguinte tem-me sido preciosa:
não te encolhas, nunca te encolhas. O gajo que se encolhe é que se parte todo. Uma lição para a vida, mais propriamente para os encontros fortuitos e sem-cerimónia em que os jogos de quatro linhas são férteis. Ainda no outro dia a pus à frente do boi. Um boi por acaso possante, papa-léguas, infatigável, impressionante, um boi arrebenta-bois. Acorremos ambos, o boi e eu, a bola perdida, ressaltadeira. Em rota de colisão. Na aproximação verifiquei que a linha do meu olhar não lhe subia do diafragma; mais para cima, as ventas e o cabelo, farto. Um rápido estudo de biodinâmica aconselhou-me a desviar a trajectória ligeiramente para a esquerda*. Assim fiz. Já à queima-roupa palpitei cá para mim:
bons olhos te vejam, e deixei-me ir, a aposiopese às malvas, sem contrair uma única fibra muscular, a placa motora feita com a inércia. Diz quem viu que bati rijo. Muito rijo. Fiquei na mesma, mas ele, o vitelito taludo, não. No chão, o dorso flectido, inerte, a respiração preia, da boca saíam-lhe uns vagidos ininteligíveis, chiados, pios e ais-ais guturais, uma jeremiada conforme a coisa ruim. Era. Luxação no cotovelo e fractura na clavícula. À longa convalescença com ele e à feira das vaidades comigo. Não é todos os dias que se despacha (sem intervenção da vaca leiteira) para o hospital um galalau na flor da idade com mais quinze centímetros de altura e talvez trinta quilos de peso.
Pretium doloris? Isso é que era bom. Soube tão bem. Sabe tão bem. Quase tão bem como a notinha cínica que lhe fiz chegar por mão amiga da onça com a epígrafe poética mais conhecida do Mallarmé:
un coup de dés jamais n'abolira le hasard.*Aprende, Filipe. É para a esquerda. Sempre para a esquerda.