baboushka

Allan Kaprow, Grandma’s Boy, 1957Eu tive uma só avó. A outra levou-a um cancro antes de eu alcançar a medida do palmo e meio que é quando a gente começa a ser meio gente. A avó era única mas não era boa pessoa. Além disso, quando dei por ela já ia para velha, desdentara e vestia preto de alto a baixo. Um preto baço, que absorvera mal o tempo, a usura e as visitas frequentes do padre da paróquia. Nos poucos momentos passados a sós comigo, explicava-se, amiudadamente: a pauta de Jesus, meu filho, a pauta de Jesus. Eu olhava para ela e pensava mas deixava estar: já conheceste melhores dias. Num final de tarde igual a tantos outros, pirraçado daquilo resolvi fazê-la sentir a força da minha presença. Estava ela absorta nas qualidades do Senhor, preguei-lhe um susto de morte. Virei a boca para cá e peremptorizei: pot-bouille! Andava de volta do Zola e pareceu-me farpa consentânea à minha má vontade. Estremeceu, pôs os olhos fitos em mim, abriu muito a boca e nada. Comme au théatre, deu cinco curtos passos na direcção da mesa do telefone, tonteou, fez-que-faria o sinal-da-cruz se estivesse outra e caiu, fulminada. Comme il faut, ao chegar ao soalho estrondou e desconjuntou, ali ficando desmesurada. Conheci o remorso, o suficiente para a cobrir com uma mortalha que, cortesia do destino e de todos os trapos lá de casa, fedia a naftalina. Da certidão médica consta como causa do óbito doença cardíaca súbita. Súbita mas não definitiva, acrescento eu, que já na altura torcera o nariz e por isso dera de frosques dali e mais tarde do velório mal pudera. Hoje surge-me em sonhos a confidenciar ao ouvido: não esperas pela demora. Parece impossível. Foi preciso a danada sem-vergonha passar para lá donde nem possesso se regressa para aprender que a conversão se induz como quem não quer a coisa.

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