doxa
Faz hoje precisamente um ano, publiquei um texto sobre a (minha relação com a) opinião e (com) a sua deriva utilitarista que torna impensável (absurdo, inconsequente, irrelevante) pensar ao arrepio da formação de juízo peremptório e invariavelmente da tomada de posição. Agora que venho de dois dedinhos de participação (muito marginal) numa campanha política, é a altura certa para o recordar (antes de mais, a mim mesmo).
[O meu problema com a opinião] Não é que haja em excesso; nem que as pessoas, escudadas no seu carácter sacrossanto, falem com ligeireza e fast thinking do que não sabem; nem sequer que, através da colagem da livre expressão à opinião, esta tenda a colonizar a esfera pública prensando outras modalidades de expressão a ponto da microscopização. O meu problema com a opinião é que ela encerra uma gramática assertiva, afirmativa, categórica que se coaduna mal com inquietações, perplexidades, dúvidas, interrogações. Quem opina por regra define, assevera, firma-se, toma posição, situa-se em contraditório com outrem igualmente assertivo, procura o veredicto, ter razão, quer dizer: beneficiar do reconhecimento de possuir a razão do seu lado. Um discurso que não apresente essas propriedades centrais da opinião (auto-)condena-se ao esoterismo, ao objecto excêntrico, quando não estapafúrdio e caprichoso. Para mim opinar é de facto uma violência (à qual cedo de quando em vez). É-o não por causa do esforço de construção de argumento mais ou menos complexo mas sim por ser constrangido a adoptar uma nomologia que encana o logos dentro de limites insatisfatórios, demasiado estreitos, obstruindo a reflexividade que quer rasgar além do mero esgrimir tantas vezes auto-complacente e narcísico de pré-conceitos. Eu tenho sempre muito mais dúvidas e enigmas por resolver que certezas e convicções, essas pautas de ordem que nos levam à certa, por mais tranquilizantes e reconfortantes, diria anestesiantes que estas sejam. Aliás, interessa-me mais o trabalho de enigmatização do que o de decifração. Não havendo enigma não há lugar à revelação, à descoberta, a abrir a arte do entendimento, apenas à confirmação, à reiteração de ponto de vista. À lógica da opinião falta essa curiosidade fundamental, pueril no melhor sentido do termo, ou seja como a que (só) se observa nas crianças e ainda mais nos bebés, singularmente (con)genial.Eu sei que os primeiros sinais da pós-campanha são preocupantes. Encorajados pela cavaqueira pastosa do Presidente da República sobre consensos alargados, alguns cabos do Não e oportunistas amorais como o caudilho da Madeira correram a retomar teses retrógradas epigrafadas nas (ou instrumentalizadas através das) noções de aconselhamento e boas práticas, tornando mais claro que a questão central é e sempre foi de mão: sobre as mulheres, sobre o seu corpo, sobre o seu arbítrio (presumivelmente incompetente – uma mulher que aborta é uma mulher que não sabe o que faz). Terá toda a razão o Miguel Vale de Almeida quando afirma que para que o PS não ceda nesta matéria é fundamental que os movimentos do Sim estejam atentos e intervenham. A luta continua, tem de continuar, sim, mas não para mim, comigo. Nem como contrapeso crítico à pragmática e à praxe do argumentário político, da communis opinio, muito menos como vanguarda de um novo espírito científico, mais dialogante, interdependente, programático, engagée, orientado para a acção, a intermutar is e ought – e não resisto a citar o conselho do Wittgenstein das Investigações Filosóficas: desconfiar do poder que a linguagem tem de fazer com que tudo se assemelhe. Chega. Fico por aqui. Por mais estimável (i.e. informada, exigente, não-mistificadora) que seja, a doxa, a sua ordem cognitiva não são cá de casa. Ou melhor, são-no enquanto objecto, não como instrumento de conhecimento.
Contrapor-se-á que este texto é uma contradição nos termos. Uma opinião sobre a opinião, que por isso replica todos os vícios que a opinião – tal como aqui é paradigmatizada – apresenta. Não contesto. Mas o mundo não é só complexo, é também contraditório – aspecto que a Razão Providencial tem dificuldade em aceitar. Nem este texto nem eu próprio estamos fora do mundo. E é por estar no mundo desta maneira pouco prática (sobre a qual paira duas vezes a angústia da página em branco) que pessoalmente não me rendo (pelo menos sem tensão interior) ao cenário de vir a ter uma coluna regular de opinião seja em que jornal for.