infeliz natal, uma narrativa na primeira pessoa

Todos os meses assoma à porta. Vem num pé lesto, porém esquivando-se à data certa. Se me vê, antecipa: já não venho cá há tanto tempo e não volto tão depressa. Segue-se-lhe assunto de penar, desgraças dentro da desgraça, peripécias mais e menos verosímeis conforme as vazas. Em podendo, não me quer. Quer mulher, que se compadeça do esmoler nas roupas e nas alparcas, no pano que lhe vela o cabelo, nas facturas e nas receitas médicas, amarfanhadas, na pele encascada, na penca escura, nos dentes cariados, no hálito ranço, nas chagas que expõe com pudor teatral. Que endormente e consinta, que não a embargue pela indiferença, que não lhe exija vassalagem, o canto da esmola, gratidão real, contrapesada na cláusula da boa acção, a caridade que os lacaios miseráveis precipitam para abater no cadastro dos pecados. Nunca traz escolta, não espera entrar. Quer o costume. Abono, mercê sem interrogatório nem recomendação. Tal qual a mãe.
A mãe era de meus pais. Do tempo em que eu pulava escadas abaixo e - acolitado pela porteira do prédio defronte, do lado de lá da rua, que gorjeava e voltava costas para recolher ao interior do interior da casa ao mínimo sinal de resistência ou animosidade - aterrava da identidade antes da silhueta que espiava através da fresta do portão pesado de ferro. Acanhado pela apreensão, não me atrevia a fitá-la. Da insídia imemorial que a porteira com o tacto e o gáudio mal-disfarçado da intriga covarde persistira em me inculcar, acudia-me que a morte e a ruína coincidiam nela. Ela, a cigana, hidra de muitas cabeças e sentenças, deferente mas altiva. Ela, a quem aos poucos me descobri a descobrir descobrindo que venerava as mãos, as linhas, que lia compassando pausas prolongadas e sons graves. Ela, da expressão primitiva da galhardia que não reconhecia Paço, a atenção filiformada no rosto. Ela, que a minha curiosidade vinha resgatando do temor para o respeito, do desfecho para o prólogo, da fatalidade para a incógnita amável.
Um certo dia, entrado na adolescência – teria doze, treze anos, apanhou-me sozinho em casa. Sem aviso, brotou-lhe perfídia bolsada numa insolência cruel: se é de mim que tens medo nunca terás sossego na vida. Medroso fracassa. Recuei, tremulando, até um brusco rasgo de arrogância me deter. A sombra do pobre-diabo que se deixa ficar paralizado pela agressão cingiu-se-me ao peito. Tinha de dissidir, porfiar na vocação da sobrevivência, repelir a humilhação, aparar o golpe, restaurar o amor-próprio. Ainda a meia-voz disse-lhe: se é em mim, meio-criança meio-homem, que expias a imprecação que cobre a tua raça, não prestas.Não me voltes a incomodar. Mandarei soltar os cães.
Não mais lhe dei o benefício da ilusão. Continuei a crescer e a abrir-lhe a porta ocasionalmente. Era já a voz plena, grave e seca que a enxotava: não está ninguém. Ela esquadrinhava-me e, adivinhando-me, desafiava. Regressaria, enfrentando a recepção glacial, até haver alguém, até ter. Passaram anos deste trato de gestos e palavras despeitados mas sem aparato, só atmosfera carregada e tensa, que eu, passado o momento, dissipava confortando-me na ideia de prudência recíproca. O torpor do novo costume todavia não duraria muito mais. Nas vésperas de uma Natividade, conta hoje mesmo a segunda década, o equilíbrio do encontro cedeu perante um sinal de desdém que ela não quis ou pôde conter. Caí em mim, o flanco aberto. Na fidelidade à fórmula do repúdio que há anos eu empregava, vogava o espírito do serviçal obediente e zeloso. Um zé-ninguém voluntarioso. Senti raiva, perdi as estribeiras. Firmei-me no ódio absoluto, a pax germanica: o único cigano bom é o cigano morto. Pela primeira vez, vi a desorientação vencer-lhe a expressão. Com as pálpebras dos olhos pregadas uma à outra retirou-se, sem verbo, sem grafar a gravidade, capitulativa. Nunca mais a vi. Gratifiquei-me. A Solução Final.
A Sara é o terceiro dos sete filhos vivos, quarto de todos os que respiraram. Di-lo, e eu nem faço questão de imaginar que é antídoto para a peçonha. Não me emociona, não me afecta, não me absorve, não me pode (a)trair, nem tampouco compadecer, que é a palavra que dispersa o sofrimento, ao contrário da mãe, que comigo fez de mim parente pobre do Senhor das Velhas Escrituras. Não tenho razões para desejar à Sara bem ou mágoa, para lhe reprovar o objecto da visita. Nada me fez, nada lhe fiz de que, em querendo, me pudesse arrepender. Mas não consigo evitar uma comoção tormentosa que agonia até à exaustão física quando a avisto. Não é dela mas de mim o oráculo que desde o começo da adolescência me entreva. Sei-me intolerante perante revezes, capaz de matar quem me ameaça e do impulso vingativo, da vã campanha da desforra, tanto quanto incapaz de compaixão, clemência, perdão, amor ao próximo, aos outros. Sei que, quando o génio inflama, é à sanha fascista e só a ela que respondo. Como um mutilado da alma. Sei que não posso ser metade do homem que gostaria de ser.

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